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No coração da noite veloz

Foto: Rogério Newton

 Foto: Rogério Newton

Por; Rogério Newton

 

Alguém me disse: suba a escadaria e contemple a cidade, os morros e o rio. Foi o que fiz ao chegar, não sem antes tentar ouvir o coração da rua que outrora foi a principal e que depois recebeu o nome de avenida. Como convém a toda cidade nascida do entrelaçamento de pequenas vias tortas, não é uma rua longa, embora larga. Começa ao pé da escada e deságua em silêncio no rio seus enigmas e sua ânsia. 

Em verdade, ao deixar a estrada e seguir de carro até o coração da cidade, já buscava a corda que fez vibrar os poetas que a amaram tanto. As ruas estreitas, os casarões de portas e janelas, a feira, as pessoas e o sol me receberam como um velho e estranho desconhecido. Um grupo de estudantes de outra cidade chegou quase junto comigo. Mas tinham pressa e foram embora. 

Foto: Rogério Newton

Fiquei e subi até o topo. Divisei o cenário de telhados e torres de igrejas, o rio e os morros. Não era só uma cidade que se revelava, mas uma vida, um frêmito, uma espera, um amor. Era uma cidade sobre a terra e um céu sobre a cidade e sobre nós, de nuvens brancas. O ponto mais alto é o recanto em homenagem ao poeta Da Costa e Silva, deserto, na manhã banhada de luz. 

As fachadas de portas, janelas e beirais atraem o olhar e os anseios. O ritmo da paisagem muda ao sabor dos desenhos das molduras. Lembram mandalas, parecem flores. Um desses casarões soturnos e graves, pintado de verde, abriga peças em memória de Dona Dedé, criadora da Festa do Divino no Bairro Vila Nova, onde a cidade começou, na Barra do Rio Mulato. Quase em frente, Ronaldo expõe peças antigas pelos vãos da casa, onde prateleiras e um balcão de madeira formam a adega de vinhos e licores que ele mesmo faz. 

Os casarões seduzem com seu misto de glória e sombras, mas é preciso caminhar na Rua das Flores, pelo nome e porque nela nasceu Da Costa e Silva. Estreita é a via, e termina no rio. Mas lhe meteram asfalto, e não há ali, além da solidão, nada ou quase nada que lembre o poeta, a não ser a placa de bronze, onde se lê que ele nasceu numa casa que não existe mais. Isso faz lembrar outro poeta, que disse não andar mais pelas ruas de Amarante, mas pelas ruas da memória. 

Foto: Rogério Newton

Há muito para ver e sentir. O calor está aumentando e o rio convida para um mergulho em suas águas. Espere um pouco, ó rio de canaranas e de gente que não sabe e nem pode viver sem ti. Andaremos nas ruas que deságuam em seu leito e em outras que as cruzam, nem sempre formando ângulos retos, como a Marechal Floriano, que ninguém sabe como veio parar naquele lugar, mais propício à brisa que ao ferro. No centro histórico, é talvez a única em que, por milagre, o asfalto não sepultou o calçamento, mais antigo que os paralelepípedos. 

Na esquina daquela via obscura com a Desembargador Amaral, que a província batizou de avenida, e onde meninos vendiam azeite de coco, há uma casa belíssima, cuja fachada é toda de azulejos, lembrando a época do Porto de São Gonçalo, em que os vapores vinham de Parnaíba, trazendo produtos que não existiam naquelas paragens. Comerciantes enriqueceram e construíram armazéns e casas enormes. O grau de abastança, segundo o olhar arguto do professor Marcelino Barroso de Carvalho, era medido pela residência que fosse, ao mesmo tempo, morada, comércio e pousada para os que vinham de fora. 

Após a ponte de madeira sobre o Rio Mulato, chega-se ao Areias e sua capelinha azul e branca. Talvez não se perceba, mas era bairro negro. Impossível esquecer Maria Auta, que não tinha medo de cuidar dos tuberculosos. O padre considerou-a prostituta e negou-lhe sepultura no cemitério. Anos depois, outro vigário quis corrigir a injustiça. Mas, quando tentaram retirar os ossos para o traslado, destes jorrou sangue. Por isso, ficou ali mesmo, 

por esta cova sem muro 

por esta terra sem fundo 

a travessia no escuro 

por este canto de dor 

na escritura de Carvalho Neto, que vingou-se ofertando o “elogio à ternura ou canto à alma Auta, santa dos pobres. 

Deixemos vielas e memórias sombrias e vamos logo para o cais, rampas e escadarias e casarões voltados para o rio, como, aliás, toda a cidade assim o fora. Encontraremos os atracadouros dos barcos, com gente a ir e vir de São Francisco do Maranhão, por causa do trabalho ou para curtir a praia de água doce, cheia de barracas de palha e de encerados coloridos, com mesas e cadeiras dentro d’água. Ali, o Canindé se junta ao Parnaíba, depois de atravessar várzeas e chapadas trazendo cantigas e piabas. 

Impossível falar do Parnaíba sem evocar Da Costa e Silva, revivido na voz e na paixão do Dr. Tatá, que nos recebe recitando poemas, diante dos painéis de Hostyano Machado e da estátua do autor do Refrão do Trem Noturno. 

Outros poetas cantaram o rio sem medida, como o já citado Carvalho Neto e Clóvis Moura, cujas cinzas foram lançadas no lugar que o menino mais amava: 

Naquele rio sem ponte 

da cidade de Amarante 

choviam estrelas nos pés 

da criança debruçada. 

As águas tragaram a infância 

que ali desapareceu. 

Durante todo o dia, faltou água nas torneiras e nos chuveiros. Mais esse paradoxo involuntário construiu a cidade, que, na cadência dacostiana, “Entre os três rios, lembra uma ilha, alegre e linda.” 

A noite chegou. Há cadeiras nas calçadas. Procuro um lugar além das palhoças para tomar banho. Após sentir na pele a delícia, sento-me na margem a olhar o rio. De repente, lembra o Ganges. Era como se o Parnaíba tivesse se misturado a ele, e os dois fossem um só, deslizando na noite veloz.

 

Publicado na Revista Revestrés Nº 37 – agosto-setembro de 2018

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