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Ode ao riso. Por; Rogério Newton

 

Por; Rogério Newton

 

 Pangula morreu! Viva Zé Pangula! Tive vontade de dizer ao receber a notícia. Eu já sabia que ele não estava bem. Há três ou quatro anos, andando no Rosário, senti vontade de revê-lo. Deitado na cama, não saia mais de casa. A conversa entre nós foi rápida. Queixou-se da falta de saúde. Não era mais o mesmo. 

Lembro bem da sua figura ágil, um tanto desengonçada. Impunha-se pela autonomia e pela verve brincalhona, envolvente, provocativa. Fazia troça até de si mesmo. Eu o admirava e temia. Nunca o vi se intimidar por nada. São inúmeros os episódios em que se saiu admiravelmente de tentativas de diminuí-lo ou estigmatizá-lo pelo fato de ser negro ou pobre. Sua defesa era o humor, mas estava pronto para o que desse e viesse, embora nunca tenha visto ou ouvido falar que tenha ido às vias de fato. 

 

Uma vez, presenciei, assombrado, uma discussão entre ele e um cabo do exército, que dava aulas de Educação Física no ginásio. Esse militar queria imprimir nos alunos tratamento de caserna, exercícios puxados, hierarquia. É claro que Zé Pangula não se submeteu ao regime e o enfrentou corajosamente, ao contrário de nós outros, aprisionados ao código moralista da época.  

Só agora entendo o significado das atitudes de Zé Pangula. Sei que muitos o viam como inconsequente, mas a verdade é que trazia em si mesmo o signo da liberdade. Era algo inato ou resultado de uma história de vida. Insubmisso, inquieto, vivia intensamente. Curtia com amigos as noites de boemia. O Rosário era seu reino, o habitat sincero, mas queria viver sem limites. Quando o bairro negro e a cidade ficaram pequenos demais, arribou para São Paulo. 

Eu desconhecia a origem do nome Pangula. Só há pouco tempo, conversando com sua irmã de criação Anatália Santos, soube que era filho da grande repentista Maria Pangula, que saiu do Cassange, interior de Simplício Mendes, acompanhando sua irmã Preta Bedego, para morar em Oeiras. Aportaram no bairro que acolhe os negros desde os tempos coloniais. Alí, Preta Bedego conheceu José Bispo do Nascimento e se casaram. 

Mas Maria Pangula demorou pouco em Oeiras, partiu para Teresina. “Ela já tinha o dom do repente”, afirma Anatália. Anos depois, Zé nasceu. Maria pediu a Preta que o criasse. Pedido aceito, pois Preta Bedego tinha o coração grande e por isso mesmo criou também Patrícia, que não era sua filha de sangue, juntando-a ao Zé e aos três irmãos Anatália, Paulo e Afonso Casca Preta. 

João Bispo do Nascimento – pai de criação de Zé Pangula – tinha o ofício de ceramista. Buscava o barro no Outeiro e levava para o quintal de sua casa, onde havia a roda e o forno, e construía potes, jarros, alguidares e outros utensílios, que vendia na feira de Oeiras e de cidades vizinhas. Preta Bedego era costureira. 

Essa a família de Zé Pangula, que na época pertencia também à grande família dos negros do Rosário, o bairro mais emblemático, pátria da Casa da Pólvora, da igreja jesuítica, do Pé de Deus e do Pé do Diabo, do Lajedo do Samba e do famoso bloco Foliões do Samba. Numa foto histórica, do início da década de 1970, Zé Pangula aparece com um tamborim nas mãos, ao lado dos demais instrumentistas e passistas. 

Não tenho muitos informes sobre a vida de nosso personagem, após minha saída de Oeiras, mas sei que ele terminou o ginásio e o 2º grau, casou-se e teve uma filha, que faleceu. Depois, em São Paulo, onde viveu mais de vinte anos, foi pai de duas e trabalhou como cobrador de ônibus e encarregado de obras. Se quisesse, poderia ter se tornado humorista profissional. Talento não lhe faltava.  

A vida reservou-lhe caminhos diferentes ou ele mesmo se encaminhou para o destino com os próprios passos. Quando o revi, há três ou quatro anos, lembrei versos de Kabir: “Consumi dias e noites em distrações / E agora sinto um grande medo”.  

Mas o que ficou para mim de mais marcante foram os anos de juventude, em pleno vigor de sua verve inteligente e espirituosa, o amor à liberdade, o gregarismo e a filiação primordial ao Rosário e à sua gente.  

Adeus, Zé Pangula, não sei onde estás agora. Tomara que em um lugar, ou não-lugar, onde não haja mais necessidade de dor, somente da sua contagiante gargalhada.

 

*Rogério Newton é defensor público, cronista, poeta e ambientalista. Assina a Coluna beco do Mundo no folhadeoeiras 

 

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